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sábado, 21 de junho de 2014

Téo e Luana

   
Por uma coisa à toa, um trocinho que Luana disse dos olhos pra fora, Téo se amuou no meio da sala, olhou pra um lado e se pôs na rua, se pôs na tarde, tardezinha.
    Olhei pra Luana, ela  a vê-lo sair, e quase fui-me saltar à frente do emburrado. Iria lhe passar um olhar duro, pra ele ver que estava a queimar a cama por causa de uma pulga. Mas não; deixei-o ir. Entretanto, o olhar de Luana me rogou a segui-lo; que ele estava a fundir a cuca.
      Furtivamente, eu segui ao meu intempérico amigo. E na sua primeira parada, oh Deus! Um boteco, um inferninho, um plaisir de soirée do Umbral: moços bêbados, moças sôfregas, vozes trôpegas, seios flácidos, flapt, flapt a bailar, a voltar ao decote. E que eu quis o Sinal da Cruz, ele saiu dali, voltou a trocar pernas. Ufa!
      Adiante, Téo encontrou um conhecido. Um carinha sujo, tristemente lembrando a um pobre morador de becos. Não dei bola ao que concordaram, e Téo seguiu, apressando o caminho. Daí quedou-se ao portão de uma mansão, onde se iria dar uma festinha.
      O porteiro, ao ver a boa feição de Téo ― feição mudada pelo bater pernas? ― abriu-lhe o portão. O porteiro estalou dedos e disse: “Qualquer coisa, você é meu amigo”. Então ele entrou, e eu, no ofício que me impôs o olhar tristinho de Luana, saltei à grade pela parte erma do jardim, e fui-me esconder deles atrás de um oleandro.
       Mas olha só, Téo  também  não tem  tarimba:  ir-se encontrar, de  cara, com as garotas, ainda mais a Lulu, a aniversariante? Hã! Um irmão dela bufou, e bufou outro irmão mais cabeçudo, e Téo pegou, pra minha alegria, o caminho do portão que o porteiro escancarou às pressas.
      Segui ao  meu intempérico amigo, na sua volta. Não me preocupei com os plaisir de soirée do Umbral do caminho, porque Téo voltava de instinto e alma para Luana. E assim que apontou a cara na porta, o menino da casa, que chegara da escola, gritou à mãe, a mãe que nem sabia que o cãozinho havia saído às ruas: “Mãeê, Téo voltou!”
       Voltou, parou no meio da sala, olhou pra um lado, saltou-se ao sofá, juntou-se à Luana. Daí, com eles em paz, Téo de carinha seca nas patas dela, eu vim-me embora. Vim, vibrando com o instinto de carinho e dependência que os conduz. Sei do árduo trabalho que terei para com o jeito de Téo, assim que ele deixar o plano físico. Até lá, é claro, ele há de se amuar pelas coisas à toa, um trocinho que Luana disser dos olhos pra fora.



quinta-feira, 12 de junho de 2014

Dorinha, me dá um beijo?

    Do cantar aflito de uns pneus, o baque, a vida do lugar vergada ao peso da tristeza, a alma de uma mãe em retalhos sem cor, ela sentada na rua com o filho inerte ao colo, às lágrimas fartas.
    O filho, o garoto Deco, luas e sóis agora entregue à cama. Dorinha, a metade dele da vida de brincadeiras, velava-o em preces e carinho. Às vezes, ela saía à rua, palco dos seus folguedos com Deco, e, plantada para o céu, via a pipa do amiguinho a subir, subir, a bailar, bailar na sua figuração. “Seu pensamento voa mais que a minha pipa, hein, Dorinha?”, ele a provocava, no imaginário.
        Com Deco à ponte entre dois mundos, a rua ficou sozinha. Coisas que eles viveram à sombra da vida, o cofrinho da mente de Dorinha desguardava. Coisas de somenos, mas que raros tiveram de mais. Coisas puras, sem o uso de agudeza para entende-las, e que nas suas pausas, Deco tirava do sem mais nem menos: “Dorinha, me dá um beijo?”
        Agora, ao toque da Ave-Maria, Dorinha saiu de vez à rua. Forte, a segurar o rosto, o choro, o ficar em vão, mas sendo fiapinho de nuvem pra segurar o mundo que havia tecido com Deco, o mundo que pendia para o nunca mais. Então a mãe de Deco chegou, feição carregada de trabalho, besta de carga da tristeza, e pegou-lhe os braços: “Dorinha... Dorinha, e o Deco?“
         Dorinha mordeu o lábio, não disse  nada. Guardou consigo  o Deco ter-se erguido da cama com outro corpo, um translúcido, um levíssimo, um luminoso, e beijar-lhe o rosto em lágrimas. Então, respondeu-lhe com um beijo ao “Dorinha, me dá um beijo?”, e o viu sair-se ao que lhe estava por vir, deixando para trás o corpo das brincadeiras de rua.
         Agora, Dorinha se mudou de casa, pra uma casa sem rua. Dorinha se mudou de muitas coisas, menos do olhar pro céu, do buscar Deco no céu, nos entre os voos dos pássaros, nos entre os raios do sol, nos entre os raios da lua.