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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Léo

 

                                                             Léo da Amanda, do Dirceu, da Aninha.


O Rei Sol deita os raios na grama, e estes se espalham que nem sombra de nuvem para secar possíveis rastros de tristeza. Já sei, qual é a do Rei Sol: é purificar o Parque para a chegada das cri-anças.

E o meu coração, de tão bom que é ver o Léo, me pinta um quadro: o Parque é o céu e ele uma pipa amarela a deslizar-se pelo azul. Daí, que a sua mãe e a irmã se ocuparam com as amigas, Léo se esgueirou para o Velhinho da Pipoca. Já esteve com ele outras ve-zes, muitas, e da primeira se fizeram amigos.

Sim, amigos. Tanto que a prosa de amigos de longe revela ternura. E agora, o Velhinho da Pipoca apontou o dedo para certo lugar por ali, e eu, como sei o que se passa, denuncio o que ele disse ao garoto: “Sim, Léo, é bem ali, perto da sua casa”. Daí, em novo gesticular, finalizou: “Isso, Léo. Faça isso, garoto! Vá em frente!”.

Ninguém sabe de nada. É ainda mistério. Somente Léo e o Velhinho da Pipoca, que, confesso, sou eu, é que sabemos. E o que escondeu dos pais, por receio de eles não o aprovar, acon-teceu.

Foi num feriado desses, um dia de não deixar a cama que, instruído em sonho por seu Amigo Invisível, Léo saiu. Em modo furtivo, com lápis, folha de caderno e biscoitos no bolso, seguiu direto para a grade de uma casa, onde um cãozinho morria aos poucos por maus tratos. Ele e o vira-latinha eram os únicos acordados naquela manhã, e o pobrezinho, encolhido de frio, aten-deu ao seu estalar de dedos.

Léo o tirou daquele horror, envolveu-o com a sua camisa e, a caminho do Abrigo São Chiquim de Assis, o dos animais abandonados (“Sim, Léo, é bem ali, perto da sua casa”), lhe foi dando biscoitos. Deitou o frágil cãozinho à porta e, a olhar para os lados, escreveu rápido bilhete: “Ele morria, onde vivia”, e tocou a campainha.

Atrás de um poste, Léo assistiu a uma das cuidadoras recolher o vira-latinha. Em casa, vestiu nova camisa de pijama e se fingiu dormido até a sua mãe o chamar. Será que a mãe (e as mães têm pacto com os Anjos), irá dar falta da camisa? Pode ser. Até lá, ninguém sabe nada, enquanto os raios do Rei Sol se espalham para secar possíveis rastros de tristeza, no Parque.


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Os Três Desejos de Aninha

 

                          Aninha Rezende Ceccato

As crianças (era um dia não muito distante), por certo saíram às suas janelas, assim que o dia se clareou para elas, e perguntaram: “Cadê o mundo que estava aqui?”.

Sim, Aninha assim se perguntou ao vidro da sua sala e enumerou as ausências: a moça, a que passava toda manhã com a sua cadelinha Teca e acenava para Aninha, cadê elas? O papagaio que pousava na árvore de frente para a sua sala, ao qual ela deu o nome de Zeca, e quando ela saía para saudar o dia ele se pegava na maior prosa engrolada; cadê o Zeca? Por ali, passava uma professora com seus aluninhos em escadinha da idade, e Aninha os comparava à pata e seus pa-tinhos a caminho da lagoa; cadê eles? Também havia um vovô que vendia pipoca no seu carrinho bem de frente à sala em que Aninha fazia os seus trabalhos da escola... Espera: e a escola, cadê a escola e as “tias” e os meus amiguinhos?

O Anjo da Aninha (em um dia não muito distante) responderá à sua protegida o que ela tanto quer saber. Talvez a resposta caia como à que ela deu ao seu pai e à sua mãe: depois de assistirem, ao chão da sala, aos desejos concedidos pelo Gênio, em Aladdin, ela falou, de imediato, dos seus:

1.º : Brincar amanhã e sempre de Barbie com meus amigos, na piscina da Vovó;
2.º : Que o papai e a mamãe trabalhem todo dia e sempre, daqui de casa;
3.º : Que em lugar nenhum do mundo tenha o Corona nem outras doenças.

Eu poderia falar do silêncio do mundo, mas prefiro entrar no silêncio dos pais de Aninha, depois dos três desejos dela. E para quietar e secar a lágrima que subiu ao cantinho dos olhos, a mãe foi estourar outra pipoca. Aninha se pôs ao vidro da sala, e, com a mãozinha cheia dos enormes grãos estourados, acredito que ela foi ver se o Zeca estaria ali, na árvore de frente.


[Textos na Quarentena, 2020]

quarta-feira, 22 de julho de 2020

De quem, essas palavras?

Manhã, tão suave manhã que os pássaros ris-cam, e o sol é um descuidado atrás da serra. Mas essa graça é ferida pela sirene impertinente da ambulância, que, marcada pela urgência, nem à porta da casinha de Vô Zinho, para de soar. Acontece que Vovó Mariazinha encontrou seu companheiro de rosto tombado na mesa. E sob o rosto, sem que ela percebesse, uma poe-sia em papel amarelado. Alguém a lê inadver-tidamente em voz alta, assim que o carro-de-socorro leva Vô Zinho (queira Deus que não os 71 anos de mãos dadas), deixando o silêncio a tomar conta da vila:


Para Mariazinha:

Terna manhã
em que o passaredo canta
e o dia se desperta
para se pôr na beira do rio
a ouvir a toada da água
e sentir o olor das florezinhas...

Mas sou mais que o dia,
pois todas as manhãs,
antes que o passaredo canta,
me ponho feito poesia ao seu lado
para te encher de beijos,
minha Mariazinha.


A Vovó se volta do vão da porta e quer saber: “De quem, essas palavras?”. Quem as leu, diz que elas são da poesia que estava sob o rosto de Vô Zinho. E ela: “Não, não pode ser. Nós não aprendemos a ler e escrever. Estranho, isso.... Mas ele me beija, sim. Muito. Toda manhã. Pensa que estou dormindo.”



quinta-feira, 16 de julho de 2020

A tristeza do Zeca

Me pergunto em que posso ajudar o meu amigo Zeca. Estou por saber, porque o Vírus Corona me freia de passar umas horas com ele, na pra-cinha.

Da penúltima vez, eu lhe disse, da janela do meu quarto, que o Vírus está aqui, na nossa grande Escola, para calibrar as cores da Natu-reza, engrenar as estações do ano e a nos dar algumas liçõezinhas. Por exemplo, a prática da nossa igualdade, a solidariedade, porque não passamos de criaturas, como o são os animais, os rios, as árvores… E que sejamos bons alu-nos, nós, os humanos, e não saiamos de casa para não atrapalhar o trabalho do Vírus.

Mas não é fácil. Zeca diz, com a sua eterna rouquidão, que nada tem a ver com as destruições da nossa grande Escola e com a nossa (um tanto) falta de empatia. Assim, ele não aceita o fato de eu não estar com ele, na pracinha. Embirra-se (que dó!) e vai aí, a querer ver as suas pessoas. Doido por criança, quer ver a Gabriela, o Xande, a Bianca, a Aninha … e nada. As crianças estão dentro de casa.

No entanto, estou a progredir quanto à tristeza do Zeca. Ele já entende a Quarentena, parece, e está de cara melhor. Tanto que hoje, cedinho, pousou na minha janela e bicou uma papaia por inteira. Daí me disse voá, voá e voou. Mas em segundos, voltou para agarrar a casca, que ficou na minha mão. Eita, papagaio!


terça-feira, 7 de julho de 2020

Doutora Luísa



Luísa, 6 anos, está com a sua vovó, no sítio. Acompanhamo-las com o olho da alma, e a Vovó a leva para ver um ninho de passarinho, num pé de pitanga. 

Mas que susto! Caído ao pé da pequena árvore, um filhote se agoniza sobre folhas secas. Com ele nas mãos em concha da Vovó, elas voltam a casa com a ideia de um ninho de retalhos e mingau de fubá. E somando a esse cuidado, entra em ação a assistência carinhosa da Doutora Luísa. 

O paciente, ao nosso olho da alma, é feito de pa-ciência, parece. São muitas as perguntas da Doutora, e é um tal de “fale 1, 2, 3” e medições de temperatura e batimentos cardíacos feitos com a ponta do dedo mindinho, de não acabar mais. 

E daí, o nosso olho nem pisca: é que acaba de chegar à clínica, cujo endereço é a banqueta da cozinha da Vovó, a mamãe-passarinho. A mamãe havia voado pra lá e pra cá, ao terreiro. Aquele voo que o nosso olho da alma conhece muito bem: o de assuntar. 

Então ela assuntou, assuntou e, decidida, entrou na cozinha em vruuup para acom-panhar o tratamento do seu filhote, e pousou no ombro da médica. E o nosso olho da alma repousa nessa cena até que o paciente ganha alta e a mamãe-passarinho o leva de volta ao ninho que construiu na pitangueira do mágico quintal da Vovó.


segunda-feira, 29 de junho de 2020

Em memória de Nina da Rua

À menininha Olívia Rezende Kunz


"Nina da Rua"
Todo dia, cedinho, antes de abrir o açougue, Sêo Tuim a procurava com o olhar do outro lado da rua. E lá estava ela, a Nina da Rua, a se espreguiçar num beco de muro. Então ele a cumprimentava, “Oi, Nina! Bom-dia, Nina!”, e abria a sua casa de carnes.

Mas as vovós, vizinhas de lado de Sêo Tuim, não iam com isso. Se zangavam. Ora! Elas a cumprimentavam antes de Sêo Tuim, e Nina fazia de conta não as ouvir. Pior: parecia que o velhinho do açougue dava preferência à Nina. “Parecia, não. Dava”, diziam as vovós.

Nina empacava o atendimento. Demorava-se na escolha da carne. Ia de cá pra lá, de lá pra cá, ao balcão em vidro. “Que tal esta bisteca, Nina?”, era Sêo Tuim. “Ou essa fatiazinha de fraldinha, hein?”.

Hoje, as vovós concordam, a prioridade do velhinho açougueiro à Nina, poderia durar anos e anos, que elas não ligavam. Tudo porque se ouviu o rangido agonizante de pneus na rua, e alguém levou a Sêo Tuim a triste notícia sobre Nina.

Houve luto de um dia, na Vila Caládia. E que o açougue abriu as portas, lá estava Nina da Rua que Sêo Tuim fez de papelão, as patinhas apoiadas ao vidro do balcão de carnes. “Sem a gatinha”, diz o povo, “a Vila anda muito triste”.

Homenagem a uma gata da Turquia.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Se Tisca falasse...

A muitos fugiu a sorte do lar, o biscoito, a água limpa e o sorriso da mamãe pela manhã. E o mais legal: o fiel companheiro a conversar e a dar corrente em um pas-seio alegre pelo parque, onde o Rei Sol quer brincar com a gente.
Falo em sorte como bênção que tem o momento de acontecer. Que passem os anos aos trancos, como a viver pelas calçadas, a dormir o olhar nas mãos de quem se alimenta, a saltar a um osso atirado para esse fim, a levar chutes e até ouvir “sai pra lá, cãozinho do diabo!”
E a bênção que falo não tem tamanho. Só de ela passar a borracha nas dores, a se fazer no ponto de nova vida e dar cores a tudo, já se sabe que quem a envia é infinito.
Sei que tudo isso diria Tisca, se ela falasse. Porque o seu olhar para o céu, para a rua e para a mamãe que a tirou do canil, onde viveu por 6 anos sem ver uma criança a correr com bola, me diz que iria agradecer à benfeitora com uma só palavra: “Obrigada!”

(Crônicas de Quarentena. 2020)





quarta-feira, 11 de março de 2020

O Entregador de Pão

Mais que a Cartilha Sodré, que a Cachoeira de Paulo Afonso, que a Missa Primeira, a primeira profes-sora… Mais que Papai Noel até, era-me o entregador de pão. Ao quentinho de mamãe, ela me sussurrava que só os galos seresteiros e as estrelas o conheciam. No escuro, à espera dos seus passos na calçada, dos seus toques leves na janela, ao prender a sacola de pão, meu fôlego opresso, meus ouvidos atentos, meus olhos abertos eram maiores que o silêncio que me fazia. E que seus passos se iam, eu, a aspirar o cheiro morno do pão que entrava pela fresta da janela, ficava a imaginá-lo como uma sombra, como um verso lírico de que carecia o luar. Nem mamãe, nem papai me falaram do entregador de pão. Nunca. Hoje, penso que não o fizeram para não ferir o silêncio de que eu era feito.