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quarta-feira, 22 de julho de 2020

De quem, essas palavras?

Manhã, tão suave manhã que os pássaros ris-cam, e o sol é um descuidado atrás da serra. Mas essa graça é ferida pela sirene impertinente da ambulância, que, marcada pela urgência, nem à porta da casinha de Vô Zinho, para de soar. Acontece que Vovó Mariazinha encontrou seu companheiro de rosto tombado na mesa. E sob o rosto, sem que ela percebesse, uma poe-sia em papel amarelado. Alguém a lê inadver-tidamente em voz alta, assim que o carro-de-socorro leva Vô Zinho (queira Deus que não os 71 anos de mãos dadas), deixando o silêncio a tomar conta da vila:


Para Mariazinha:

Terna manhã
em que o passaredo canta
e o dia se desperta
para se pôr na beira do rio
a ouvir a toada da água
e sentir o olor das florezinhas...

Mas sou mais que o dia,
pois todas as manhãs,
antes que o passaredo canta,
me ponho feito poesia ao seu lado
para te encher de beijos,
minha Mariazinha.


A Vovó se volta do vão da porta e quer saber: “De quem, essas palavras?”. Quem as leu, diz que elas são da poesia que estava sob o rosto de Vô Zinho. E ela: “Não, não pode ser. Nós não aprendemos a ler e escrever. Estranho, isso.... Mas ele me beija, sim. Muito. Toda manhã. Pensa que estou dormindo.”



quinta-feira, 16 de julho de 2020

A tristeza do Zeca

Me pergunto em que posso ajudar o meu amigo Zeca. Estou por saber, porque o Vírus Corona me freia de passar umas horas com ele, na pra-cinha.

Da penúltima vez, eu lhe disse, da janela do meu quarto, que o Vírus está aqui, na nossa grande Escola, para calibrar as cores da Natu-reza, engrenar as estações do ano e a nos dar algumas liçõezinhas. Por exemplo, a prática da nossa igualdade, a solidariedade, porque não passamos de criaturas, como o são os animais, os rios, as árvores… E que sejamos bons alu-nos, nós, os humanos, e não saiamos de casa para não atrapalhar o trabalho do Vírus.

Mas não é fácil. Zeca diz, com a sua eterna rouquidão, que nada tem a ver com as destruições da nossa grande Escola e com a nossa (um tanto) falta de empatia. Assim, ele não aceita o fato de eu não estar com ele, na pracinha. Embirra-se (que dó!) e vai aí, a querer ver as suas pessoas. Doido por criança, quer ver a Gabriela, o Xande, a Bianca, a Aninha … e nada. As crianças estão dentro de casa.

No entanto, estou a progredir quanto à tristeza do Zeca. Ele já entende a Quarentena, parece, e está de cara melhor. Tanto que hoje, cedinho, pousou na minha janela e bicou uma papaia por inteira. Daí me disse voá, voá e voou. Mas em segundos, voltou para agarrar a casca, que ficou na minha mão. Eita, papagaio!


terça-feira, 7 de julho de 2020

Doutora Luísa



Luísa, 6 anos, está com a sua vovó, no sítio. Acompanhamo-las com o olho da alma, e a Vovó a leva para ver um ninho de passarinho, num pé de pitanga. 

Mas que susto! Caído ao pé da pequena árvore, um filhote se agoniza sobre folhas secas. Com ele nas mãos em concha da Vovó, elas voltam a casa com a ideia de um ninho de retalhos e mingau de fubá. E somando a esse cuidado, entra em ação a assistência carinhosa da Doutora Luísa. 

O paciente, ao nosso olho da alma, é feito de pa-ciência, parece. São muitas as perguntas da Doutora, e é um tal de “fale 1, 2, 3” e medições de temperatura e batimentos cardíacos feitos com a ponta do dedo mindinho, de não acabar mais. 

E daí, o nosso olho nem pisca: é que acaba de chegar à clínica, cujo endereço é a banqueta da cozinha da Vovó, a mamãe-passarinho. A mamãe havia voado pra lá e pra cá, ao terreiro. Aquele voo que o nosso olho da alma conhece muito bem: o de assuntar. 

Então ela assuntou, assuntou e, decidida, entrou na cozinha em vruuup para acom-panhar o tratamento do seu filhote, e pousou no ombro da médica. E o nosso olho da alma repousa nessa cena até que o paciente ganha alta e a mamãe-passarinho o leva de volta ao ninho que construiu na pitangueira do mágico quintal da Vovó.