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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A mulher só e o cãozinho misterioso

SERIA mais um dia da vidinha de regar as plantas, tomar o café e ir dar corda à solidão, na rede da varanda. Isso se não lhe batesse a falta de energia e concentração, que, da noite para o dia, se fez dona dos seus anos de vida.
     Num esforço hercúleo chegou ao posto médico. No primeiro parecer, nada de importante diagnosticado; um desconforto virótico. Mas dias depois, num exame minucioso, revelou-se a insuficiência renal como a força motriz da sua revolta.
     O que  eu fiz, ó Vida, para ser  entregue às clínicas e às picadas de agulha? No auge da revolta, Deus lhe havia traído. Daí, que tudo se danasse... Que o mundo fosse sugado pelo buraco negro do universo, importava-se lá.
    Um dia, na cama, em desânimo profundo, viveu um revérbero da infância: a casa simples, os pais, o quintal aberto e cheio de plantas e frutos; e como membro da família, um cãozinho, o Bambino, a correr com ela na rua descalça.
    Bambino! Que cãozinho interessante, que se sentava e cravava nela os olhinhos de jabuticaba, querendo brincar... Bambino! – disse sem querer, como o dizia na infância, ao vê-lo na sua cama. Bambino? – voltou a dizer ao cãozinho que a observava do vão da porta. Bambino! É você?! – sentou-se na cama, espantada.
     Não. Não podia ser. Bambino  morava há anos e anos em  outro plano de vida... Então que cãozinho aquele que lhe puxava o lençol e o travesseiro, e que a tirou da cama para regar o jardim? Que cãozinho danado que a fez correr com ele pelo quintal?
    Vai Bambino, corra! Pega! É isso, garoto! Você não é o meu Bambino de criança, mas se parece muito com ele, viu? Vem, é hora do banho... Era a hora, mas de ela ter a vida de volta: o telefone insistiu, e do hospital lhe informaram que um rim a esperava.
   Um mês depois, que já cuidava do jardim e dos pássaros do jardim, e que contemplava o céu recamado de estrelas, sentiu saudade do cãozinho que se havia desaparecido. E no outro dia, que o buscou na vizinhança, nenhuma criança deu notícia de Bambino... Aliás, ninguém o havia visto ou ouvido; nem soubera da existência do cãozinho.
    Ué! – é ela de mãos à cintura no meio do jardim, cheia de saudade de Bambino, o cãozinho que a tirou da cama, e pasma com seu sumiço misterioso.


Ao meu amigo belenense Marco Aurélio Kunz