ROSINHA TEM nove anos, não tem
irmãozinho e já não tem mamãe. Ela mora com a vovó Silvéria e o pai, numa casinha
branca ao pé de serra. O terreiro é de areia branca, e Rosinha brinca de
bambolê de cipó, de casinha e boneca, de curralinho e pula-corda ― a corda é um
cipó preso ao pé de caju, e quem bate o cipó é a vovó.
No
pula-cipó, Rosinha não brinca sozinha: o Bilico, seu cãozinho, ela o ensinou a pular.
Quando a vovó bate o cipó mais ao chão, aí é a vez de o Bilico pular. Rosinha ri
ao ponto de acordar as estrelas, ao ver Bilico pular cipó. É que, ao pular, Bilico
late e dá cambota; que nem o que lhe contaram de um palhaço de circo.
E
ali, de banda, passa um corguinho cantador; preguiçoso. O corguinho deixa
escapar do seu sonho uma cantiga: xiiitrixiii.
Mas aí que está: vovó Silvéria acha que o corguinho não fica sonhando cantiga é
nada: ele fica é imitando o ventinho que passeia na mata, fazendo as folhas se roçarem
umas nas outras.
A
mata é destamanho. E da mata, olha só: quando o Uirapuru canta, de manhãzinha e
na Ave-Maria, Rosinha e vovó Silvéria param com tudo pra ouvir a flauta do
bichinho. Não só elas, mas os pássaros e tudo para com tudo pra ouvir o seresteiro.
Um
dia, seu pai, que entra na mata pra pegar folhas de chá, encontrou um filhote
de papagaio. Rosinha cuidou dele: fez-lhe caminha de capim maciinho, lhe deu
mingau, que a vovó cozia, e o deixou dormir ao quentinho dos seus pés. Daí, o
que virou esse filhote, hein? Virou no molecão do Zeca, que canta e fala que
nem matraca.
Aí,
outro dia, seu pai encontrou um filhotinho de onça-pintada. Ai! Ai! Ai! Ele
rodou a cabeça, que nem o pião se roda no chão, procurando a mãe. E, entendendo
que o filhote havia sido largado, ou que sua mãe havia sido morta por algum
homem mau, ele o levou para casa; pra Rosinha. Daí ó, tome zelo, leite com mel
e o carinho do canto da cama pra oncinha Pintita.
Acontece
que apareceu gente da cidade. Disseram-se do Governo, coisa e tal, e que ali
não era o lugar da Pintita, coisa e tal. “Não!”, eles disseram. “Onde já se viu
uma oncinha se pendurar no vestido de Rosinha e da vovó... Brincar com um
cãozinho, pular cipó com Rosinha, e ainda deixar o Zeca andar de cavalinho
nela? Ora! Que isso?”
Que
isso foi que eles levaram Pintita. Que isso foi que o Zeca se calou, o Bilico deitou
a cara nas patinhas, o Uirapuru fechou o bico, o corguinho não mais deixou escapar
a cantiga do seu sonho e Rosinha deixou de tudo pra cair de cama.
Vovó
Silvéria velou por Rosinha doente, pares de dias. Mas aí que está: que a febre
de Rosinha lhe queimava a mão, vovó Silvéria passava as contas do rosário, e o
rosário lhe dizia que Pintita iria voltar. “Vai voltar”, vovó repetia, “Pintita
vai fugir e voltar, eu sei, eu sei que vai”.
Aí
um dia, manhãzinha, Bilico garrou a latir, e o Zeca a prosear, e o Uirapuru a
tocar sua flauta, e o corguinho a deixar escapar a cantiga do seu sonho. E aí foi
a vez de a vovó acordar as estrelas com seu riso esparramado, ao ver Pintita deitadinha
no meio do terreiro.
Sabe
da alegria do joãozinho-de-barro e da joaninha, quando eles terminam de fazer
sua casinha? Pois é, essa alegria vazou para o terreiro... Pula-se no
pula-cipó; faz casinha e curralinho e boneca; Zeca de cavalinho na Pintita...
Mas, aí, chegaram os homens do Governo.
Eles chegaram, mas o que é
que tem? Tem que um deles chorou e chorou por ter-se visto menino, ali no
terreiro, de pés no chão com os animais e breado de alegria. Tem que eles
entraram no jipe e se foram... Foi isso, e assim, e pronto.
Essa historinha é de Vó Silvéria Ferreira de Carvalho, que, aos 90 anos, aumenta mais a sua riqueza de virtudes que juntou pela vida. A bênção, Vó Silvéria.
Ai eu venho aqui e me encanto, mais uma vez, com mais uma bela e cativante histórias desse talentoso amigo mineiro. Abraços
ResponderExcluirBoa tarde, Márcio! Acredita que um dos meus alunos, o Leandro de 10 anos. Contou a história de quando o pai dele era criança e achou um filhote de onça? Digitei hoje cedo, se der tempo publico amanhã. Seu texto é encantador, como todos os outros. Vou recomendar aos meus alunos.Um abraço.
ResponderExcluirComo sempre, volto à infância ao ler seus textos, Márcio. e me comovo até às lágrimas.
ResponderExcluirOi, Marcio. Que historinha linda! E que bom que ela pode ficar com a oncinha. Se bem que a oncinha vai crescer e aí...
ResponderExcluirMárcio querido, sem palavras pra dizer da alegria que Vó Silvéria, minha Mamãe ficou quando lhe contei que seria personagem numa historinha sua. Que Deus lhe dê em dobro meu amigo a felicidade que você proporcionou a ela e toda a GALERA, que vai ficar sabendo e comentando este causo. Meu carinho mesmo, de coração.
ResponderExcluirPoxa!Um conto bem encantado...Marcio, Deus te abençoe sempre, sempre... Você é iluminado... Beijos e Sorrisos
ResponderExcluirPatty
Parabéns a você Márcio e a vó Silvéria, um encanto de conto. Meu carinho a você. Bj, Cida.
ResponderExcluirLindo! Com certeza, um mimo para as crianças.Conceição Gomes
ResponderExcluirMárcio, suas palavras, como sempre, me vestem de criança, de doçura, de encantamento, de emoção! E sem vontade nenhuma de sair daqui!... Meu carinho e admiração te abraçam.
ResponderExcluir" Rosinha ri a ponto de acordar as estrelas. "
ResponderExcluir" Ventinho que passeia na mata" ... Conotações enriquecendo o texto de beleza ímpar. Linda mensagem de amor e dedicação de uma vovó muito especial em que "o homem mau" se percebe ali com saudades de uma infância distante.
Chegamos até a imaginar o canto do Uirapuru coroando a sua escrita. Muito lindo!
Mais uma vez parabéns, Marcio.
Bj.
Nem eu, que sou protetora de animais, pensaria que um bicho, por mais silvestre que seja, depois de ser criado com humanos, viveria melhor no mato. Lindo seu texto. Que bom que teve final feliz.
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