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quinta-feira, 4 de abril de 2013

Rosinha e Pintita, o filhotinho de onça


ROSINHA TEM nove anos, não tem irmãozinho e já não tem mamãe. Ela mora com a vovó Silvéria e o pai, numa casinha branca ao pé de serra. O terreiro é de areia branca, e Rosinha brinca de bambolê de cipó, de casinha e boneca, de curralinho e pula-corda ― a corda é um cipó preso ao pé de caju, e quem bate o cipó é a vovó.
    No pula-cipó, Rosinha não brinca sozinha: o Bilico, seu cãozinho, ela o ensinou a pular. Quando a vovó bate o cipó mais ao chão, aí é a vez de o Bilico pular. Rosinha ri ao ponto de acordar as estrelas, ao ver Bilico pular cipó. É que, ao pular, Bilico late e dá cambota; que nem o que lhe contaram de um palhaço de circo.
    E ali, de banda, passa um corguinho cantador; preguiçoso. O corguinho deixa escapar do seu sonho uma cantiga: xiiitrixiii. Mas aí que está: vovó Silvéria acha que o corguinho não fica sonhando cantiga é nada: ele fica é imitando o ventinho que passeia na mata, fazendo as folhas se roçarem umas nas outras.
    A mata é destamanho. E da mata, olha só: quando o Uirapuru canta, de manhãzinha e na Ave-Maria, Rosinha e vovó Silvéria param com tudo pra ouvir a flauta do bichinho. Não só elas, mas os pássaros e tudo para com tudo pra ouvir o seresteiro.
    Um dia, seu pai, que entra na mata pra pegar folhas de chá, encontrou um filhote de papagaio. Rosinha cuidou dele: fez-lhe caminha de capim maciinho, lhe deu mingau, que a vovó cozia, e o deixou dormir ao quentinho dos seus pés. Daí, o que virou esse filhote, hein? Virou no molecão do Zeca, que canta e fala que nem matraca.
    Aí, outro dia, seu pai encontrou um filhotinho de onça-pintada. Ai! Ai! Ai! Ele rodou a cabeça, que nem o pião se roda no chão, procurando a mãe. E, entendendo que o filhote havia sido largado, ou que sua mãe havia sido morta por algum homem mau, ele o levou para casa; pra Rosinha. Daí ó, tome zelo, leite com mel e o carinho do canto da cama pra oncinha Pintita.
    Acontece que apareceu gente da cidade. Disseram-se do Governo, coisa e tal, e que ali não era o lugar da Pintita, coisa e tal. “Não!”, eles disseram. “Onde já se viu uma oncinha se pendurar no vestido de Rosinha e da vovó... Brincar com um cãozinho, pular cipó com Rosinha, e ainda deixar o Zeca andar de cavalinho nela? Ora! Que isso?”
    Que isso foi que eles levaram Pintita. Que isso foi que o Zeca se calou, o Bilico deitou a cara nas patinhas, o Uirapuru fechou o bico, o corguinho não mais deixou escapar a cantiga do seu sonho e Rosinha deixou de tudo pra cair de cama.
    Vovó Silvéria velou por Rosinha doente, pares de dias. Mas aí que está: que a febre de Rosinha lhe queimava a mão, vovó Silvéria passava as contas do rosário, e o rosário lhe dizia que Pintita iria voltar. “Vai voltar”, vovó repetia, “Pintita vai fugir e voltar, eu sei, eu sei que vai”.
   Aí um dia, manhãzinha, Bilico garrou a latir, e o Zeca a prosear, e o Uirapuru a tocar sua flauta, e o corguinho a deixar escapar a cantiga do seu sonho. E aí foi a vez de a vovó acordar as estrelas com seu riso esparramado, ao ver Pintita deitadinha no meio do terreiro.
   Sabe da alegria do joãozinho-de-barro e da joaninha, quando eles terminam de fazer sua casinha? Pois é, essa alegria vazou para o terreiro... Pula-se no pula-cipó; faz casinha e curralinho e boneca; Zeca de cavalinho na Pintita... Mas, aí, chegaram os homens do Governo.
    Eles chegaram, mas o que é que tem? Tem que um deles chorou e chorou por ter-se visto menino, ali no terreiro, de pés no chão com os animais e breado de alegria. Tem que eles entraram no jipe e se foram... Foi isso, e assim, e pronto.


Essa historinha é de Vó Silvéria Ferreira de Carvalho, que, aos 90 anos, aumenta mais a sua riqueza de virtudes que  juntou pela vida. A bênção, Vó Silvéria.

11 comentários:

  1. Ai eu venho aqui e me encanto, mais uma vez, com mais uma bela e cativante histórias desse talentoso amigo mineiro. Abraços

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  2. Boa tarde, Márcio! Acredita que um dos meus alunos, o Leandro de 10 anos. Contou a história de quando o pai dele era criança e achou um filhote de onça? Digitei hoje cedo, se der tempo publico amanhã. Seu texto é encantador, como todos os outros. Vou recomendar aos meus alunos.Um abraço.

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  3. Como sempre, volto à infância ao ler seus textos, Márcio. e me comovo até às lágrimas.

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  4. Oi, Marcio. Que historinha linda! E que bom que ela pode ficar com a oncinha. Se bem que a oncinha vai crescer e aí...

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  5. Márcio querido, sem palavras pra dizer da alegria que Vó Silvéria, minha Mamãe ficou quando lhe contei que seria personagem numa historinha sua. Que Deus lhe dê em dobro meu amigo a felicidade que você proporcionou a ela e toda a GALERA, que vai ficar sabendo e comentando este causo. Meu carinho mesmo, de coração.

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  6. Poxa!Um conto bem encantado...Marcio, Deus te abençoe sempre, sempre... Você é iluminado... Beijos e Sorrisos
    Patty

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  7. Parabéns a você Márcio e a vó Silvéria, um encanto de conto. Meu carinho a você. Bj, Cida.

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  8. Lindo! Com certeza, um mimo para as crianças.Conceição Gomes

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  9. Márcio, suas palavras, como sempre, me vestem de criança, de doçura, de encantamento, de emoção! E sem vontade nenhuma de sair daqui!... Meu carinho e admiração te abraçam.

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  10. " Rosinha ri a ponto de acordar as estrelas. "
    " Ventinho que passeia na mata" ... Conotações enriquecendo o texto de beleza ímpar. Linda mensagem de amor e dedicação de uma vovó muito especial em que "o homem mau" se percebe ali com saudades de uma infância distante.
    Chegamos até a imaginar o canto do Uirapuru coroando a sua escrita. Muito lindo!
    Mais uma vez parabéns, Marcio.
    Bj.

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  11. Nem eu, que sou protetora de animais, pensaria que um bicho, por mais silvestre que seja, depois de ser criado com humanos, viveria melhor no mato. Lindo seu texto. Que bom que teve final feliz.

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