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sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Madrugada, 5 h.

“De repente, o mundo inteiro é um silêncio absurdo. Só porque se calou a tua voz”. Silêncio. Marina Alves.
www.recantodasletras.com.br, 2015.


Ave, se alguém souber de mim à janela, madrugada, 5 h. Mas sabe que de saber até que vai? Dou jeito, tiro o corpo fora. Nego a cair de costas. Duro é ser visto com esta cara de sonhos afundados no poço da indiferença dela. Negar, como?! Aí, claro que irão dizer: “Sabia. Estava na cara que suas flechadas de amor iam topar a pedra da Gávea no caminho do coração dela. Só você não via.”
      Com a cabeça à roda, vivo “esse silêncio absurdo porque a voz dela se calou” (1). Ô! A casa está ao jeito de fim de feira; mas o lençol da minha cama, esticadinho. E a coisa piorou quando me disseram que alguém disse que a flecha de certo homem acertou em cheio o coração dela. Apre! Até parece que a vida é de um dia, e o que passo é de três.
      Então eu tento panos quentes em mim. Mas acho que estou a me enganar, ao afirmar que a vida é assim, que “viver é muito perigoso…” (2). Então eu me lembro da minha mãe: “Se a coisa tem solução, não bagunce o coração, pois tem solução; mas se a coisa não tem solução, não bagunce o coração, pois não tem solução”. Mas mãe! A solução é ela, e agora, agorinha, já!
      Quer saber de um caso? Madrugada, 5 h., vou sair da janela, não dar a cara ao sereno, me desatar deste nem ato nem desato e quebrar a lisura do lençol, o que não quer dizer pegar no sono. Até porque daqui a uns.... Ih, está é na hora de o bem-te-vi, o que dorme nesta arvoreta de lado, acordar. E eu não quero que ninguém, nem bem nem mal, me veja com esta cara de sonhos afundados no poço da indiferença dela. Ah, não quero mesmo!

(1)Silêncio. Marina Alves, 2015 – recantodasletras.com.br
(2) Grande sertão: veredas. João Guimarães Rosa

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Ninguenzinho

     Ao suspiro do vento, as folhas caem. Aqui, como no morro acolá, que faz pose pro céu, o inverno segue com a peripécia de despir os galhos.
   Dormem as árvores, acordam as aves para  as sombras a beira-rio. O que fica é um insosso de sem cantos e voejos. Passa tangará, passa viuvinha, passa canarinho... Só não passam os pios de pranto de um pintinho, o Pio-pio-ninguém, que diz o morador; o Ninguenzinho, que diz meu coração.
     Ninguenzinho plange a dor aos fiapos de sombra de uma roseira pelada. Chega, espicha o pescocinho e fica a bulir a cabeça que nem ponteiro de relógio; decerto sem ver a hora de fazer a festa do cisco com a mãe e os irmãozinhos. Qual! Seus pios de pranto não se revelam além da linha do seu abandono.
     A vida tem dessas parecenças. Há anos, deu-se o abismoso de uma mãe renunciar ao filho, ainda em panos, numa lixeira de rua. Agora é o Ninguenzinho a sofrer o rejeito. E ele pia que pia pelo terreiro, e cada pio é um pontinho do seu coração a se secar.
     Mas é que a vida gosta de voltejo e ardileza: o filho largado foi ter-se com uma senhora num asilo, e, se no olhar se brota um trato, ela se foi para a sua casa. E ele lhe foi todo cuidado, espargiu-lhe carinhos de filho com imensa falta da mãe ― e não é que ela fechou os olhos para esta vida sem a coragem do “perdão, filho, por ter-lhe dado à lixeira?”
     Ao suspiro do vento, as folhas caem. Aos pios de Ninguenzinho, se cai o pavio do viver, se encaixa mais e mais, por ardileza da vida, o seu convívio com a mãe. No olhar do morador transparece esse preciso: a mãe ao fundo do quintal, largada pelos franguinhos, quiçá mordida por um réptil, quiçá picada pela solidão, recebe o encosto de Ninguenzinho, que lhe bica na asa como a dizer “estou aqui, mãe.”
     Até lá, passa tangará, passa viuvinha, passa canarinho... Só não passam os pios de pranto de Ninguenzinho.


quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Bênção, pai!

“De repente, não sei dizer se foi o céu que desceu à terra, ou meu coração que mudou de lugar”. Presença. Marilene Amaral Branquinho. www.recantodasletras.com.br/T3567956, 21/3/2012.



(...) O que é, é que lá vem meu pai, suado pelo trato ao chão seco e indócil como calos. Descanso nele o olhar, e meu pai é o retrato do farto do roçado, do feijão no meu prato esmaltado.
Sei do que muito lhe toca: a noite de Natal. E insone, prego um olho nas minhas chinelas na janela, o outro numa sombra, um vulto entre a hóstia do luar e o galope do meu coração:

“Não é nada não, menino. Psiu! É seu pai a se passar pelo velho Noel. Dorme, menino”.

(...) O que é, é que meu ar de moço, sopito, insosso, tombado pro chão por ruína de um amor desfeito, é sentido e erguido e esteiado por um raio do olhar do meu pai, o que percute em mim o sino da lição aprendida.
Sei do que muito lhe cabe: os calos puxando enxada, os punhos de aço (Que cansaço?), as mãos firmes do meu pai a moldar o lar: encheram a despensa, mostraram caminhos, as mãos do meu pai.

“Não é nada não, meu filho. Psiu! É seu avô a se passar por estrela. Abrace-me, filho”.

(...) O que é, é que o pocinho do fundo dos olhos se enche e derrama. Minhas mãos, calejadas, e as do meu filho, verdes, mas já com os traços do caminho, deixaram meu pai na estação: meu pai viajou pra tocar outro roçado.
Então sou eu, toda noite, ao terreiro, pr’uma estrela que pisca toda sobre mim: “Bênção, pai!”. Só aí me recolho pra hóstia de luar que entra pela janela e me faz dormir.