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terça-feira, 1 de outubro de 2013

Aluga-se

Mãos enfiadas na jaqueta e olhando pra calçada até a confeitaria. Isso, todo dia e a hora em que a estrela da manhã se recolhe: pouco antes das 6h. Se se atrasasse, Analuísa, a balconista, entrava em colóquio com seu relógio do pulso:
Ah, o que há, hein?  Também você  tiquetaqueia  muito... Se ele se demora,  e  que chega, você  deveria parar... Parar de tiquetaquear e dormir; como as estrelas que, já indolentes de tanto piscar, garram no sono... Aliás, o tempo deveria parar.
      Mas ele chegou. Com a  aura do  inverno, mas chegou. Ele não faltava às compras matinais; como não falhava o remoinho em Analuísa, agitado pela sua presença. Mais: Se esse it se fizesse em voz, freguesas e confeiteiras se estilhaçariam de despeito, ao ouvirem: olhos nenhuns o olham como os olhos de Analuísa.
    Embora  ainda não tivessem  seus flertes  o sabor ao gosto daquele homem, Analuísa  juntava os  pedacinhos  de tempo com ele, à  espera que o cupido, na  sua maestria,  um  dia fizesse deles o palco da  sua alma; o palco do qual  seria  ele a ribalta. Que esperança! Um dia, e outros dias, o sonho em vão: ele desapareceu.
    Dois andares até o apartamento lhe pareceram um degrau. A porta entreaberta, a anunciar que o dia entrava por janela descortinada, animou Analuísa a encontrá-lo. Qual o quê! O desarranjo, um papel escrito, caído ao pé do sofá, com texto não enviado, encheu-lhe o peito de vazio.
       Leu:

Volte! Não me deixe. Não me abandone. Esqueçamos os golpes dos porquês. Sol há de se fazer, se dos nossos momentos algum insistir na neblina. De corações dados, abriremos ao tempo um caminho, caso ele volte a teimar em se perder para nós. Ainda é vez de nos fazermos nuvens de uma chuva que cairá sobre o nosso amor como pérolas dos golfos do mar. Volte! Tento pensar e pisar seus rastros, mas eles se diluem... É como estar na areia sob o vento que os apaga como borracha às palavras. Escrevo-te, mas nem o vento sabe aonde levá-las a ti. Ao primeiro gesto da manhã, eu tenho dela a estrela e a moça dos confeites, que me dá o seu olhar. No mais, sou eu; no nada. Volte! Não me deixe. Não me abandone.

     Um degrau abaixo lhe pareceu uma escadaria ao centro da Terra. Antes de pisar o próximo, Analuísa se apoiou no corrimão e olhou, por instante, à placa pendurada na porta do apartamento, como a dimensionar o seu sentido: “Aluga-se”.



19 comentários:

  1. Lindo e triste canto sobre os mistérios dos encontros e desencontros do amor!

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  2. Buriti mi amigo! Es precioso. Bueno, bueno, bueno! Abrazo! Stella.

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  3. Lindo, lindo! Como sempre, você, meu amigo, arrasa!!!

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  4. Linda é a sua presença, Aninha! Muito obrigado. Beijo!

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  5. Olá, Márcio. Teu texto é lindo e comovente... o coração dele já tinha dono.

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  6. Sempre faço uma boa leitura quando venho aqui. Na vida sempre temos os encontros e desencontros, faz parte. Tenha uma boa tarde!

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  7. Que gostoso ler seus textos, tem sentimento e alma. É envolvente. Meu carinho e parabéns Márcio.

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  8. Parabens Marcio, voce é um contista de primeira.Conceição Gomes.

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  9. Boa noite Márcio, um conto que encanta pela sensibilidade ao dissertar sobre sentimentos. Beijokas de boa noite

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  10. Nossa, quanta poesia há nessa prosa! O texto não enviado é de grande beleza. Sensibilizam-me seus contos. Abraço.

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  11. Saudade dos teus contos! Envolvente demais este último. Grande abraço.

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  12. Bonito, triste, mas de uma ternura comovente. Bom demais te ler. Abraço.

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  13. Às vezes precisamos fantasiar o amor para que nossa alma não sofra com seus caprichos. E até quando dura a fantasia? Até o infinito? Não creio. Um dia a razão nos abraça e nos conduz à realidade, mesmo que ela seja cruel.
    Lindo conto! Emocionante! Construído até com certo suspense.
    Parabéns, querido Márcio.

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  14. Envolvente, emocionante o modo como você, Márcio, faz-nos percorrer os degraus da alma para ver descortinar a ribalta de sonhos e fantasias iluminando de esperanças renovadas o palco do coração. Brincando de magia com as palavras, o encantamento é sempre o mesmo despertando emoções sempre renovadas. Meu carinho te beija as mãos!

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  15. Um mergulho na alma. Num conto pra lá de poético.

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  16. Meu Deus, e foi por tão pouco, hein? Ah, que a vida é assim, aos desencontros. Tomando o café... Joia, isso!

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